sexta-feira, 31 de maio de 2013

CORTAR RECORTAR CORTÁZAR

“Não havia fim para este interminável começo de cada"

Leo Gonçalves postou a tradução que fez do poema “A fogueira onde arde uma”, de Julio Cortázar, para o Diário de Minas , em 2002. O poema tem uma surpreendente articulação interna (articulação própria de Cortázar) a partir de versos inconclusos. É um poema que nunca termina.
Segue um fragmento e tb o link para a leitura completa:
http://www.salamalandro.redezero.org/wp-content/uploads/2007/12/a-fogueira-onde-arde-uma.jpg



(Haverei mordido, sim, morder, no amor é tão
Nunca me disse nada, só atento a
Perfumava meus seios com as ervas que minha mãe
E ele, a alegria do tabaco na barba, e tanta
Nunca choveu quando descíamos ao rio, mas às vezes
Ele passava-me lento um paninho branco e preto enquanto
Chamávamo-nos com nomes de animais doces, de árvores que deixam
Não havia fim para este interminável começo de cada
(O haverei mordido enquanto ele cravado em mim me
Sempre em algum momento se mesclavam nossas vozes se
Poderia ter durado como o céu verde e duro em cima de meus
Porque se abraçados sustentávamos o mundo contra
Até uma noite, me lembro como um prego na boca, em que senti
Oh a lua em meu rosto. Esta morta carícia sobre uma pele que antes
Por que cambaleava, porque seu corpo se vencia como se
- Estás doente? Vai para o abrigo, deixa que te
Sentia-o tremer, como de medo ou bruma e quando me olhou
Minhas mãos o entrelaçaram outra vez buscando este batido, este quente tambor e
Até o amanhecer fui sombra fiel, e esperei de novo
Mas veio outra lua e nos tocamos e compreendi que já
E ele tremia de cólera e me arrancou a blusa como
Ajudei, fui sua cadela, lambi o chicote esperando
Menti o grito e o pranto como se sua carne realmente me
(Já não mais o mordi mas gemia e suplicava para dar-lhe a
Pude crer ainda, se ergueu com o sorriso do começo, quando
Mas na despedida tropeçou e o vi tornar-se todo esgares e
Só em minha casa esperei abraçada em meus joelhos até
O primeiro a me acusar foi
(O haverei mordido, morder no amor não é
Agora já sei que quando for a manhã em que me
Lhe faltará coragem para chegar a tocha aos
O fará outro por ele enquanto de sua casa
A janela semi-cerrada que dá sobre a praça onde
Olharei até o fim para essa janela enquanto
O morderei até o fim, morder no amor não é tão

(Julio Cortázar, poema do livro “A Volta ao Dia em 80 Mundos”/ Civilização Brasileira)
Foto: Julio Cortázar
* Leo Gonçalves, em parceria com Mário Alves Coutinho, é tradutor de “Canções da Inocência e da Experiência”, de William Blake. Editora Crisálida/ 2005

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